segunda-feira, 9 de outubro de 2023

O DIA EM QUE SENNA SURGIU

A história pouco conhecida da reabertura de Nurburgring, quando um novato superou nove campeões mundiais da F-1

Adam Cooper, da “Stars & Cars” (reprodução da matéria publicada na Folha de São Paulo, Seção Esporte, no domingo, dia 27 de fevereiro de 2000)

Acima, o primeiro duelo em uma pista de Senna com Prost, uma imagem que acabou se tornando o símbolo da F-1 nos anos seguintes

Você já imaginou o que aconteceria de os melhores pilotos da F-1 atual enfrentassem os gigantes do passado em carros idênticos?

Parece um sonho impossível, mas foi exatamente o que a Mercedes-Benz fez em Nurburgring, num sábado, 12 de maio de 1984.

Naquele dia, seis pilotos em atividade desistiram de um final de semana de folga para correr contra uma turma que incluía alguns dos maiores nomes da história do automobilismo. A lista de inscritos incluía nada menos do que nove campeões mundiais, além de dois pilotos que atingiram a glória e que iriam dominar a F-1 nos dez anos seguintes.

Esse evento inédito, até hoje não igualado, foi organizado para celebrar a inauguração do novo traçado de Nurburgring e o lançamento do Mercedes 190 2.3 16V.

O ponto alto do final de semana foi uma corrida de 15 voltas com os novos carros. E os pilotos foram os primeiros a experimentar o novo Nurburgring, um ultra moderno circuito de 4,5 km, construído para levar o automobilismo de ponta novamente para a região, o que não acontecia desde que o antigo traçado passou a ser considerado perigoso demais.

A Mercedes estava determinada a formar a melhor lista possível de pilotos inscritos. Entre os que estavam em atividade, a empresa atraiu Niki Lauda e Alain Prost, da McLaren, Keke Rosberg e Jacques Laffite, da Williams, Elio de Angelis, da Lotus, e um novato chamado Ayrton Senna, da pequena Toleman. O jovem brasileiro, de 24 anos, era o único membro do sexteto que ainda não havia vencido um GP na F-1.

O responsável pela inscrição do desconhecido campeão da F-3 inglesa foi Domingos Piedade, atual chefe de equipe da AMG, então um dos maiores entusiastas da carreira de Senna.

“Para ele, aquilo foi extremamente importante”, recorda Piedade. “Era a abertura de Nurburgring, o que significava muito para o Ayrton. E era a primeira vez que ele tinha um carro igual aos dos figurões. Era importante para ele mostrar do que era capaz.”

Lauda e Rosberg já eram campeões mundiais (em 75 e 77 e em 82, respectivamente), mas representavam apenas a ponta do iceberg. Juntaram-se a eles Jack Brabham (59, 60 e 66), Phil Hill (61), John Surtees (64), Dennis Hulme (67), James Hunt (76), Jody Scheckter (79) e Alan Jones (80).

O pentacampeão Juan Manuel Fangio também apareceu para apoiar o evento, mas, sofrendo com problemas de saúde, preferiu não participar da corrida.

Os únicos campeões mundiais vivos que faltaram foram Mario Andretti e Emerson Fittipaldi, que estavam nos EUA, participando dos treinos para as 500 Milhas de Indianápolis, e Jackie Stewart, que sempre se manteve fiel à sua aposentadoria e, desde 1973, não corre nem de kart.

Além dos campeões, havia outras estrelas da F-1. Dos ex-integrantes da equipe Mercedes-Benz Stirling Moss e Han Herrmann aos recém-aposentados Carlos Reutemann e John Watson.

O grid foi completado por três astros da categoria esporte-protótipo: Klaus Ludwig, Manfred Schurti e Udo Schuetz.

“Adorei aquele evento”, diz Alain Prost. “Foi fantástico encontrar todos aqueles pilotos. Nos divertimos muito, mas, mesmo com o reencontro de tanta gente, era inacreditável ver o espírito de competição que havia no ar. Todos, mesmo os mais velhos, levaram muito a sério.”

O engenheiro da Mercedes responsável pelos carros lembra como alguns pilotos se interessaram em detalhes de acerto. Reutemann chegai a exigir um jogo de pneus novos em seu carro antes do treino classificatório.

Nem todos, porém, levaram a corrida com tanta seriedade.

“Tratei aquilo da maneira como deveria ser tratado, como uma diversão” diz John Watson. “E havia uma mistura de pilotos de gerações e idades diferentes. Velhos amigos, velhos adversários ou as duas coisas. Queria em sair bem, mas não precisava provar nada.”

Mas, para Senna, o fim de semana era uma oportunidade para deixar marcas. Saindo da F-3, ele havia corrido apenas quatro GPs na F1 pela Toleman antes de ir para Nurburgring.

Já havia obtido dois sextos lugares, mas seu nome ainda não era conhecido. Nem pelos outros iniciantes que disputavam posições com ele nem pelo homem que então liderava o Mundial de F-1.

“Foi a primeira vez que encontrei o Ayrton”, afirma Prost. “Como nossos vôos chegaram com uma diferença de 15 minutos, a Mercedes me perguntou se eu poderia lhe dar uma carona. Passamos metade do dia juntos. Ele não conhecia absolutamente ninguém, o que era engraçado.”

Phil Hill era um dos veteranos que não tinha a mínima ideia sobre quem era aquele brasileiro.

“Eu e minha mulher nos sentamos em uma pequena sala e tentamos puxar assunto com ele. Estávamos congelando de frio, e havia apenas um pequeno aquecedor elétrico. Ele só ficou parado, me olhando, e eu pensava ‘O que ele quer dizer?’ Então eu desisti, pensando que ele era apenas mais um novato. Pouco tempo depois, ele já teria gravado o nome da F-1.”

O grid de largada estava repleto de estrelas como Hill, mas quando a corrida começou, com o céu cinzento, todos os olhares se voltaram para um só homem, justamente o mais jovem na pista.

Senna alcançou a liderança logo na largada. Sem errar. O brasileiro seguiu firme até a vitória.

Watson foi um dos pilotos que se impressionaram.

“Para Ayrton, em primeiro lugar, ter sido convidado para a corrida era sinal de aceitação no grupo. Era também um ritual de passagem para ele. Ayrton certamente foi para lá com uma missão a cumprir”, diz o vice-campeão de 82. “Algo que ficou claro na minha memória era o modo inacreditável como ele ia para cima das zebras. Minha geração de pilotos não atacava as zebras dom tanta agressividade. Não era por menos que ele era tão rápido.”

Watson, pelo menos, já havia falado com o brasileiro. Mas, para muitos de seus colegas, Ayrton Senna foi uma revelação.

“Foi a primeira vez que ouvi falar de Senna”, diz Stirling Moss. “Surpreendeu-me ver um total desconhecido vencer aquela prova. Acho que foi, até então, a corrida mais importante de que ele já havia participado, porque era algo de muito alto nível.”

“O mais impressionante foi a maneira como ele veio”, afirma Surtees. “Tinha um monte de gente que estava na pista se exibindo, passando pela grama, e havia Senna, dirigindo corretamente, mantendo-se na pista e ultrapassando um por um. Após aquele evento, disse para o velho (Enzo Ferrari): ‘Se você quer um piloto, ele é quem você deveria pegar’.”

Na pista, enquanto Senna ganhava vantagem, acontecia todo tipo de confusão.

“Ayrton fez um trabalho muito profissional”, diz Surtees. “Mas ele foi ajudado pelo fato de que um ou dois pilotos fizeram manobras ridículas e atrapalharam todo o resto. James Hunt foi o rei de cortar caminho pela grama. Acho que poucos carros puderam ser aproveitados depois daquilo.”

Quinze anos depois da corrida, Prost, que foi ultrapassado por Elio de Angelis na primeira volta, pensa naquele final de semana e sorri. “Acho que deveríamos fazer aquilo de novo. Os carros eram muito bons, mas não era essa a questão. O importante era que se tratava de uma competição.”

Niki Lauda foi o segundo, seguido por Carlos Reutemann, Rosberg e Watson. Mas Senna deixou sua marca. E sabia disso.

“Eu estava nos Mil Quilômetros de Silverstone”, conta Piedade. “E no dia seguinte, Senna apareceu para assistir e me agradeceu a chance de ter podido correr contra tantos pilotos famosos. Ele ficou muito orgulhoso do fato de seu carro ter sido levado para o museu da Mercedes.”

Três semanas depois, sob muita chuva, Senna foi o segundo colocado no GP de Mônaco.

Ele se aproximava do líder, Prost, quando a corrida foi prematuramente encerrada.

E foi naquele dia que o resto do mundo passou a conhecer o jovem brasileiro.

Os pilotos reunidos em uma sala do autódromo de
Nurburgring antes da largada a prova

O novato brasileiro na liderança

Vestindo o macacão da Toleman, Senna,
então com 24 anos, ergue o troféu da vitória

Alain Prost, antes da largada


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BOX: Piloto deu show na F-1 logo depois.

Da Reportagem local

Apesar do show em Nurburgring, a corrida que entrou para a história como a primeira grande demonstração de talento de Ayrton Senna aconteceu três semanas depois, em Mônaco.

O motivo: ao contrário da prova na Alemanha, essa foi transmitida ao vivo, para todo o mundo, via satélite.

Foi, também, seu primeiro duelo na F-1 com Alain Prost. E o francês, então na McLaren, levou a melhor.

A corrida começou sob chuva forte. Prost largou da pole e manteve o posto.

Senna, 13º no grid, completou a primeira volta em nono. E Stefan Bellof, um alemão, também estreante, com um Tyrrel, saltou do 20º para o 11º lugar.

Na 18ª volta, Senna já era o segundo, seguido por Bellof. Prost cedia terreno. O brasileiro passou a se aproximar e, na 31ª volta, estava a apenas 7 segundos do líder.

Naquele momento, uma decisão jogou um balde de água fria nos dois novatos.

Jackie Ickx, diretor da prova, encerrou o GP. Alegou falta de condições, devido à forte chuva. “Certamente teia ultrapassado Prost”, disse Senna. “Mas, depois, não sei o que poderia acontecer. Eu estava no limite.”

Senna e Prost dominariam a F-1 nos dez anos seguintes. Bellof morreu num acidente com um protótipo, em Spa, um ano depois. (FSx)

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O jornalista inglês Adam Cooper escreveu sobre a reinauguração de Nurburgring originalmente para a revista “Stars & Cars”, editada pela Mercedes-Benz. Curiosamente, no texto, ignorou outro brasileiro, Nelson Piquet, que havia sido campeão de 1983, ano anterior à corrida na Alemanha.

Tradução de Fabio Seixas, da Reportagem Local.

Link para o video integral da prova da Alemanha:

Relembrando Senna: em 1984, um novato, o Mercedes e Nürburgring | voando baixo | ge (globo.com)



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